segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Das Trevas



Eu olho-te aí.
Imóvel.
Quase como uma escultura de pedra.
De mão pendida no tornozelo em busca de um pouco de humanidade.

Não te voltes.
Dificilmente conseguiria disfarçar o quanto me impressiona essa solidão que trazes dentro de ti como parte integrante do teu ser.
O que serias tu sem essa negritude que te habita?
Sem essas portas, cadeados, grades?
O que escondes por trás de tantas proteções, muralhas e cercos?

Quase um fantasma, de consistência ténue, de comportamento fugaz.
A vontade de te querer sempre ladeada pela sensação de seres cada vez mais líquido que se esvai entre os dedos da minha mão.
- Podíamos ter sido tanto. Podíamos ter sido tudo... - sussurras.
Não sei bem se para mim ou para ti.
Ainda assim ecoa no meu peito a dor que expressas, a desilusão que sentes, a união que se desfaz a cada olhar antes tão cúmplice.

- Mas afinal o que te magoou?
Silêncio.

Mais silêncio.

Quietude.
O peso da respiração de quem esconde tão mais do que pode mostrar.
O dedo desliza, quase imperceptivelmente pela chávena de chá que seguras encostada à bochecha direita, numa tentativa desajustada mas tão tua de aqueceres a própria alma.
A tua voz soa clara e segura:
- As minhas próprias expectativas.

E quando o teu olhar se desvia, finalmente, para mim vejo, mais nitidamente do que nunca, esse negro por trás do teu olhar doce cor de súplica.
Uma escuridão tensa e magoada que se foi desvendando nos silêncios que não soube escutar, nos movimentos da garganta que não consegui desprender, nos músculos marcados da face que tudo o que fomos não conseguiu suavizar.

Mas ainda assim, o teu sorriso, uma ténue esperança de que o vapor do que envolve o teu corpo, por vezes tão azulado, corroa algumas fechaduras e deixe sair também luz por entre as cerradas trevas.

Que mais marcantes que as páginas que se revelam de ti, sobre as quais já não tens poder, possam ser as letras que te constroem.
Que soltas possam assumir uma caligrafia mais livre, um traçado mais meigo, uma ordenação mais simples, organizando-se numa composição mais popular  nas páginas ainda em branco dos dias que estão por vir.
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