sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Uma Senhora Nunca

" Ela está mais velha, com algumas rugas e a pele menos esticada, mas igualmente atraente aos olhos de Policarpo (…). Veste-se de forma inadequada para a ocasião. (…) Ele nunca a viu assim tão senhoril e negra. (…). Policarpo sente-se atraiçoado. «Como é que te atreves a aparecer assim, outra coisa que não a que tenho guardada na minha memória?».
(…)
Raios partam aquela mulher, ele ama-a, ele não sabe porque a ama, há anos que não a vê e não sabe nada dela, há anos que tenta esquecê-la, mas ainda a ama, não por aquilo que ela alguma vez lhe terá dito mas porque era apenas ela (…).
E Policarpo dá por si, desde a primeira vez, desde que descobriu a presença de Jorge, a recordar um momento feliz na sua história com Maria da Glória (…).
(…)
(…) Ele pensou que não havia ninguém no mundo mais afortunado. Não foi mentira, ele sempre soube, mesmo com a presença de Jorge anos mais tarde. Aquele momento existiu e teve a força de mil homens. Talvez tenha pertencido a uma outra consciência, separada dos pensamentos e das emoções.
(…)
(…) Tanto passou e é como se nada se tivesse passado, uma manobra corrupta do sentimento sobre o tempo e a recordação. Fica ali a observá-la ao longe, deixando-a chorar as dores, depois vê-a abandonar a igreja quando a cerimónia acaba sem se deixar ver e sente uma profunda admiração por ela, que não cede á tentação de perturbar a filha num dia como este. Maria da Glória é digna e ele ama-a. Ela sai da igreja e ele pensa em segui-la para lhe dizer exatamente o que sente. Ela é digna e ele ama-a, ela é digna e ele ama-a, ela é digna e ele ama-a. Não consegue. Não faria sentido. Tenta acalmar-se e leva a mão ao peito. Sente-se dormente e pensa que é excesso de emoção.
(…) irá depois jurar a pés juntos que ele estava a sorrir, profundamente feliz."

Patrícia Müller "Uma Senhora Nunca"



Este título cativou-me irremediavelmente por ser uma expressão também usada na minha infância. Uma senhora nunca chinela; uma senhora nunca se senta de perna aberta; uma senhora nunca responde a provocações na mesma moeda; uma senhora nunca tem a casa suja; nunca sai à rua descuidada, nunca diz palavrões...
A escrita é maravilhosa e bem portuguesa. O encadeamento das histórias é propositadamente baralhado, obrigando o leitor a estar atento e surpreendendo-o a cada capítulo com o pedaço da história a desenrolar.
A vida trivial de três gerações: os amores de verdade e os “de senhora”, as traições, as rotinas, a riqueza e a pobreza. Tudo descrito em movimento apressado, que se coaduna com o ritmo da própria vida.

Intimista, realista, especial.  

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Memórias


Relembra-me uma aplicação das redes sociais que há seis anos publiquei esta imagem juntamente com umas palavrinhas que se referiam às saudades do verão e dos sobrinhos.

Lembro-me de quando me foi tirada esta fotografia. Parece-me para aí do ano de 2005 ou 2006. Estava de férias de verão em casa dos meus pais. Era domingo. Estava calor demais para passear pela cidade e como habitualmente servi-me da minha bengala (o meu sobrinho mais velho) para justificar a ida para o parque de estacionamento.
Sempre gostei de rua. As paredes arquitetónicas balizam-me o pensamento e as sensações. Desde sempre senti essa necessidade de me colocar perante horizontes abertos, claros, limpidos. Quase como uma calibração dos sentidos. Descobri muito mais tarde que para um certo grupo de pessoas isto não é tão estranho assim.

O meu sobrinhito deliciou-se com um pouco de areia que havia ali e a minha mãe acabou por captar o momento de uma janela da casa com um telemóvel  (daí o "ruído" da imagem).

Eu sei que me sentia atordoada, numa daquelas fases da nossa vida em que tudo acontece depressa demais e em que as decisões  (no momento tão decisivas e exclusivas) se apresentam sucessivamente sem trazer consigo certezas nem nos fatores nem nas consequências.

Cinco ou seis anos mais tarde, ao encontrar esta imagem no computador, postei-a na tal rede social com uma legenda que apenas eu podia verdadeira e totalmente conhecer conhecer.
Em 2010 fechava-se um dos ciclos mais transformadores da minha vida.
As escolhas tinham sido feitas, a essência encontrada, quer pelo reforço positivo quer pelas experiências negativas. A sensação de desorientação era recorrente, como o é em quem decide desbravar caminho e se mete, invariavelmente, em matos cerrados.
Era um desses momentos em que a casa de família, o verão e o amor incondicional dos nossos se afigurava com o valor de água no deserto.

Hoje, quando sou outra vez recordada deste momento, não me sinto desorientada e estou onde antes queria estar, embora já não sentisse disso necessidade. Às vezes tenho a sensação que a vida tem um certo "delay" em relação aos meus desejos. Sou mais rápida do que os desígnios da vida em incorporar as situações e criar novas vontades a partir delas.

Hoje, há em mim uma melancolia doce em relação a estes momentos partilhados com esta pequenina e desaparecida pessoa que hoje já é um adolescente consumado, mas a quem continuo ligada por laços que idade ou distância alguma conseguirão quebrar.

Essa melancolia estende-se também à outra pessoa. Uma versão mais nova de mim que durante anos foi minha companheira, mas que agora vejo de fora e de quem continuo orgulhosa. Era determinada, sonhadora, empreendedora. Um pouco mais triste e preocupada do que seria necessário. Não conseguiu tudo o que queria,  mas foi surpreendida por tudo o que foi amealhando e que na maioria das vezes nem teve tempo ou coragem para querer.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Momentos felizes :-)

Muitas pessoas dizem que a doença as modificou para sempre. Não sinto o mesmo. Muito pelo contrário. Sinto que o amadurecimento natural de quem vai vivendo mais nos faz sentir mais confortáveis nuns caminhos que em outros e o tempo mais propício à reflexão potencia essa escolha ponderada.
Assim, o que estes meses atípicos me trouxeram foi uma vivência mais próxima e mais concreta das situações que me trazem paz, que harmonizam as arestas que a vida provoca, que equilibram o sentido de viver na minha vontade.
Um deles foi o meu aniversário. Organizado sem pressas, problemas ou preocupações conseguiu reunir muita gente muito querida no que acabou por ser uma tarde e uma noite muito sui generis, cheia de peripécias para  recordar (eternizada em fotografias).
Estes momentos são para mim de um valor inestimável pela energia contagiante e pelo suporte que representam.
São esta soma de momentos banais e de descontração que fazem de mim uma pessoa muito feliz.

Não ficam obviamente de fora todos os que de uma forma ou de outra fizeram chegar até mim o seu carinho. " Estar perto é estar por dentro" e fui muito abençoada com pessoas amigas para me mimar.

Obrigada a todos.

http://giphy.com/gifs/3o7TKv25HjkoSXJb

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Especiais



Não é muito frequente conhecer pessoas interessantes, com essência particular e conteúdo trabalhado, preenchido, coeso. Pessoas com vontade própria, capacidade de realização e que se posicionam na vida de forma singular, recebendo o que, a maioria dos outros, nem consegue conceber.

É raro, mas não é grave. Primeiro porque a sociedade não se importa com estes seres iluminados e pensantes que vivem por si próprios, insensíveis a massas e frases feitas. Depois porque estas pessoas também não têm como objetivo mostrar-se. O que as move é um genuíno interesse em algo que não precisa de se concretizar em nenhuma das habituais fontes de retorno: fama, reconhecimento, dinheiro ou segurança.

Sempre que me é dada a possibilidade de me cruzar com alguém assim,com mais ou menos possibilidade de conhecer toda a sua dimensão, o meu coração enche-se de esperança na humanidade e emociona-se pelo privilégio.Privilégio esse que cabe nos dedos de uma mão, mas que é tão especial que compensa a parca quantidade.

A todos os que, discretos e empenhados, dão horas e horas da sua vida nos pequenos projetos que desenvolvem inspirados pelas suas grandes paixões (especialmente aos que se dedicam ao público ou os que, no meio do processo, vão educando e sensibilizando as camadas mais jovens), o meu -gostaria muito de dizer o nosso - sincero agradecimento.

Ficamos todos mais ricos com a vossa partilha e eu fico sempre muito reconhecida pela vossa generosidade que é tão mais especial quanto mais difícil é o reconhecimento dessa dedicação. O verdadeiro valor está nos que continuam a lutar para ser a água que desgasta a pedra. A sociedade no seu conjunto é pouco sensível e maleável. Só a persistência e delicadeza podem transformá-la em personalidades mais capazes de ser únicas e maleáveis o suficiente para se poderem unir.

Esta é uma missão que estimo muito, tal como a todos os que tentam dar o seu contributo para a cumprir.



sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Amor nos Tempos de Cólera


Quem me conhece ou já me segue há algum tempo sabe que um dos meus hábitos mais enraizado e queridos é ler. Aceito ler tudo o que me chega às mãos, e embora não seja daquelas que continua a ler um livro por obrigação ou porque fica bem, dou oportunidade e às vezes leio tudo até ao fim na esperança de uma reviravolta.
Este modo de estar na leitura acaba por me fazer muitas vezes encontrar piada em tipos de narrativa mais particulares. Tal como nos filmes aprecio bastante as narrativas abertas e os romances que são mais como crónicas de vidas intimas e aparentemente banais. Aprendi a gostar desta surpresa que se sente ao virar de cada página entre o registo rude das personagens e a descoberta da sua complexidade interior.
Quem lê muito e há muitos anos também sabe que, como em tudo na vida há momentos, e apesar de conceituado autor e de muitos dos meus amigos leitores me falarem de várias obras nunca tinha conseguido ler nada até agora.
Mas a verdade é que este livro me cativou verdadeiramente em dias em que poucas coisas o conseguiam fazer e sinto que Fermina Daza e Florentino Ariza me acompanharão por muitos e muitos anos.
Recomendo a quem goste deste tipo de literatura mais aberta e a quem tenha paciência para ler e ler sem nada acontecer.


"Queria voltar a ser ela própria,  recuperar tudo quanto tivera de ceder em meio século de servidão que a fizera feliz, mas que, uma vez falecido o marido não lhe deixava a ela nem os vestígios da sua identidade. Era um fantasma em casa alheia,(...) perguntando-se angustiada quem estava mais morto: o que tinha morrido ou a que tinha ficado?"

"Era como se tivessem saltado por cima do árduo calvário de vida conjugal e tivessem entrado diretamente e sem mais delongas no amor. Seguiam em silêncio como dois velhos esposos escaldados pela vida, para lá das armadilhas da paixão, para lá das trapaças brutais das ilusões e dos reflexos dos desenganos: para lá do amor. Pois tinham vivido juntos o suficiente para se darem conta de que o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer lugar, mas tanto mais denso quanto mais próximo da morte."

terça-feira, 31 de maio de 2016

Aproveitando os dias menos cinzentos

Nestes dias LONGOS de recuperação toda a gente me diz para ver filmes, séries, televisão, ler uns livros.
Nos primeiros momentos isso era impossível e sempre que tinha um pouco mais de energia saía à rua. Ultimamente já tenho conseguido ver mais filmes e ler um bocadinho e como não posso ir tanto à rua como gostaria, tenho que me render.
Já que assim é, ficam aqui umas sugestões para quem goste, tenha tempo ou precise de algo com que se distrair.

Para dar umas gargalhadas 











Para conhecer perspetivas






Para ser surpreendido



Para "abrir os olhos"




 " Apesar de se terem salvo com dinheiro dos contribuintes, rapidamente começaram a culpar os emigrantes e os pobres. Desta vez até culparam os professores."


Para nos devolver a esperança





terça-feira, 10 de maio de 2016

Não é verdade...





Não é verdade que a vida se viva sempre seguida, num fio contínuo, sem interrupções, sem quebras ou paragens.
A vida de que nos habituaram a falar é mais mentira do que verdade.
É conceito organizado, artificial; fácil de entender, de assimilar, de reproduzir, de concretizar.
Começa num determinado ponto que se vai encadeando devagar em outros pontos. Percurso organizado que se cria na nossa mente quando a palavra se reproduz.


A verdade é que a vida é de porcelana fina: lasca-se, racha-se, parte-se… e por muito que se cole ou cubra a loiça nunca mais volta a ser igual, a ser nova, a ser perfeita.
A vida não é um percurso organizado. Abre-se em ramos e mais ramos.
Não é possível escolher um caminho de cada vez.
É obrigatório percorrer vários ao mesmo tempo, mesmo os que estiverem cortados ou os que se revelarem becos sem saída.
A vida é o que cada um de nós vive dentro de si mesmo, independente da vida que nos dizem para viver.


Vida que é mais em cada cicatriz, em cada mazela, em cada tentativa de recuperação e se renova maravilhosamente a cada gargalhada, em cada dia de sol e em a cada tarde de preguiça.


T.   Março/2014









 The Palace of Prince Smetsky - construído em 1913- Abkhazia, Georgia - vmulder.livejournal.com

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Colecionar bons momentos


Bons momentos,boas energias, bons amigos, boas conversas, boas companhias.

Sempre fui muito fã de gente que me deixa bem e sabe ter uma conversa. Esses momentos que tanto valorizei têm- se revelado indispensáveis para me manter bem e capaz de superar este grande obstáculo. Nas horas de silêncio e desconforto lembro-me muito do carinho dos muitos que me rodeiam. De todos os que fui conhecendo ao longo do tempo e que, neste momento, confirmam o meu juízo de valor sobre eles. Vem-me à mente os momentos passados em conjunto. Os sorrisos, as brincadeiras, os projetos. 
Acredito na força dessas memórias, na verdadeira energia dessa vida que fomos construindo quando a vida ainda era só as banalidades do quotidiano.
Sei que consigo estar com muitos poucos dos que ficam, mais ou menos longe, a torcer por mim, mas para todos fica a minha profunda gratidão pelo carinho e respeito com que me têm tratado.
 Quer seja a afastarem-se quando acham que eu quero, quer seja com os docinhos, os grelos da quinta, a canjinha com ovos, os iogurtes caseiros e as gelatinas, quer seja com os pequenos presentes ou empréstimos de lencinhos, brinquinhos ou principalmente com as horas em que ficam a fazer-me companhia quando mal posso falar ou quando me ouvem horas a fio a falar das mesmas coisas,mesmo que mal sentadas ou cheias de frio.
Muitos me têm falado do exemplo, do positivismo com que tenho levado estes dias, mas a verdade é que é fácil manter-me animada com tanto cuidado e atenção à minha volta. É um trabalho de equipa que tem tudo para dar certo. 
A todos, mesmo a todos aqueles a quem quase não chego a responder ou com quem falo menos um sincero obrigada.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O que fica do que parte

Descobri assim por acaso (como descubro quase tudo o que seu sobre mim), o motivo para sempre ter gostado tanto de cemitérios.

Desde miúda sempre gostei de cemitérios.
Sinto um apaziguamento e uma outra sensação que não sei nomear, mas que se parece com uma extrema capacidade de oferecer apoio a quem precisar: uma dose extra de cuidado, paciência, simpatia, compreensão.
Nunca procurei propriamente resolver este meu estranho (ou nem tanto) gosto e ficou assim, uma private joke entre os meus familiares mais chegados.
A sensação que tenho ao entrar num cemitério atribuía-a por ser um local onde, eventualmente, as pessoas estão num sofrimento atroz por uma perda de alguém querido, sem que na maioria das vezes manifestem essa dor.
Reina, habitualmente, o silêncio e um certo absurdo nos gestos corriqueiros de encher o regador de água, tirar as flores do plástico, cortá-las para que fiquem na jarra...
Reconheço e identifico-me automaticamente com esta aparente normalidade exterior onde num olhar mais triste ou perdido ou numa lentidão dos movimentos se percebe a dor, o desalento, a inconformidade, o choque.
Talvez por isso se encha o meu interior de uma dose extra de cuidado. Preciso que o meu sorriso transmita essa empatia. Que a pessoa possa, por breves segundo, sentir-se compreendida e igual ao seu semelhante.

Hoje descobri que o que eu gosto nos cemitérios é sobretudo a representação que eles são do respeito, carinho e dedicação de uns pelos outros.
Alguém, mais ou menos convicto, mais ou menos triste, teve o cuidado, no mínimo, de solicitar a edificação de um espaço (com mais ou menos ornamentações) para o seu ente querido.
Por isso me atraem os jazigos, as campas que se destacam pela excessiva ornamentação ou pelo bom gosto da simplicidade. Gosto de ler as lápides, ver as fotos, imaginar vidas nos sorrisos ou no olhar das pessoas que já se foram.

Gosto da arrumação arquitetónica. Tudo dividido, como em pequenos jardins. Gosto dos gradeamentos, das escadinhas, dos portões. Gosto de ver as pessoas "etiquetadas", as que foram mães, avós, filhos, mulheres. Assim, organizadas e tão facilmente identificáveis. como jamais conseguimos ver quando estão vivas. De certa forma ganhando em método, o que se reduzem em ser.

E por tudo isto, sempre que vou ao cemitério visitar a minha avó, penso que gostaria de ficar por mais um tempo e vaguear. Mas quase nunca fico, porque há uma parte de mim que se sente uma intrusa, assim a bisbilhotar na vida das pessoas, mesmo que a mesma já tenha acabado.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

A Insustentável Leveza do Ser

Não só um título incrivelmente denso e cativante, mas uma obra doce, direta, cativante e forte que nos leva e enleva ao longo da vida das personagens que se apresentam sem aviso ou ordenação.

                                         
Há muito que não lia um livro tão diabolicamente entrelaçado e que prendesse a minha atenção e curiosidade por tanto e tão precioso tempo.

domingo, 3 de abril de 2016

Stoner





















Stoner é um professor universitário na primeira metade do séc. XX, apaixonado pela literatura e pelo ensino.
Pessoa de origens e pensamentos simples, que se concretizam numa vida banal, embora de certa forma desatrada e cheia de situações que apesar de corriqueiras nos prendem pelo mistério e sobretudo pela intimidade do discurso.

Criando uma espécie de empatia com partes do nosso próprio ser e do que faríamos nas mesmas situações é um relato fascinante e perturbador.
Aconselho a quem goste de ler só porque sim e a quem procure confrontar-se com estilos diferentes de escrita e narrativa.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Mil e um noites




Um final de noite em vésperas de verão. 
Estava escuro e 
quente ali.
As cores da televisão refletidas na pele nua e no branco das roupas que vestiam.
Espalhou-se no espaço que existe entre os dois aquele sentimento de falta de preenchimento. 
Aquele que nos faz abrir uma cerveja, fumar um cigarro, comer um chocolate ou batatas fritas.
Ela mexe a perna brilhante e bronzeada para afastar uma mosca e repara, embora disfarce, que o olhar dele se desviou da televisão para seguir o movimento da sua perna.
E logo de seguida ele mexe as pernas, cento e oitenta graus graus para mais perto.
Ela sorriu interiormente pela atenção que ele lhe prestou, lisonjeada por ainda o conseguir atrair para si, embora se mantenha exteriormente serena e aparentemente distraída.
- Vou comer. Queres alguma coisa?- deixa cair ele, parado em frente à televisão.
Ela  acena um não e nem sequer levanta o olhar para se encontrar com o dele. Sabe que assim que o fizer estará perdida. Ele estará a sorrir, maroto e ela não conseguirá resistir a responder com um sorriso também.
E é aí que ele a ganha, que ela deixa de conseguir fingir, que a razão se preenche de comodidade e conforto do prazer já conhecido, já trabalhado e ajustado.

Ele baixa-se e, num gesto que pretende ser ocasional, toca-lhe na pele muito ao de leve.

-Nem uma gelatina de melancia? - sempre as mesmas notas nesta cantiga de bandido que ela ouve em modo repeat sem se fartar.
 É a vez dela jogar. Sabe que ele reconhece o arrepiar da sua pele a cada toque seu. Anos volvidos e o arrepiar dá-se igualmente ao primeiro toque e vai-se repetindo numa cadeia ascendente à qual é difícil virar as costas e resistir.
- Não, obrigada. - consegue ela dizer sem o olhar.
Ele sai da sala. A ela invade-a a outra razão. Aquela que lhe recorda a sensação de angústia, de ansiedade,  de espera.
Ele volta a entrar. Ela observa-o, antecipando cada gesto seu, cada movimento do seu corpo. O sorriso que se formará quando a consegue distinguir na penumbra,  o olhar ardente que a vai percorrer da ponta do pé até aos olhos, a forma como a camisa azul clara se vai ajustar no peito quando ele se baixar, o aroma a perfume que a rodeará ao aproximar-se,  a tensão das veias do seu braço quando pousar a mão ao lado do seu corpo para se apoiar. O reflexo da luz no masculino relógio que traz no pulso. A maciez dos seus lábios quando tocarem o seu pescoço, a firmeza dos dedos que obrigarão o seu rosto a elevar-se e a solidão que verá espelhada no brilho aos olhos dele quando finalmente não os conseguir evitar.


Assim, sem aviso prévio, nem motivo de primordial importância, vai-se perdendo parte do encanto nesta desconstrução das inconformidades deste inalcançável ser.
Em tempos este olhar indecifrável fazia-a correr em seu salvamento. Sentia-se bóia,  bote salva-vidas, cobertor e conforto do que lhe parecia o mais indefeso dos seres humanos.
Hoje sente o seu próprio ser remendado, em luta pela sobrevivência enquanto tenta esgueirar-se dos becos escuros para onde a empurra esta sedução doentia e fraca.
Desta vez gela-se o impulso de aproximar os seus lábios do calor prometido. 
Inebria-se o corpo, perdendo capacidade para continuar a provocação. 
Demora-se o tempo em câmara lenta e muda-se a prespetiva, como se outras personagens observasse em seu lugar. Segue-se um sabor amargo na boca e o desconforto característico de perda e desilusão.
Tudo o que haviam tido desmorona-se assim, num corriqueiro segundo, enquanto ela se mantém imóvel apesar da proximidade do corpo dele.
Segundo que ele nunca conhecerá, compreenderá ou dará valor, mas que a liberta dele como antes horas de um dia inteiro nunca tinham conseguido fazer.




Foto: Inspiration Grid
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