" Ela está mais velha, com algumas rugas e a pele menos
esticada, mas igualmente atraente aos olhos de Policarpo (…). Veste-se de forma
inadequada para a ocasião. (…) Ele nunca a viu assim tão senhoril e negra. (…).
Policarpo sente-se atraiçoado. «Como é que te atreves a aparecer assim, outra
coisa que não a que tenho guardada na minha memória?».
(…)
Raios partam aquela mulher, ele ama-a, ele não sabe porque a
ama, há anos que não a vê e não sabe nada dela, há anos que tenta esquecê-la,
mas ainda a ama, não por aquilo que ela alguma vez lhe terá dito mas porque era
apenas ela (…).
E Policarpo dá por si, desde a primeira vez, desde que
descobriu a presença de Jorge, a recordar um momento feliz na sua história com
Maria da Glória (…).
(…)
(…) Ele pensou que não havia ninguém no mundo mais
afortunado. Não foi mentira, ele sempre soube, mesmo com a presença de Jorge
anos mais tarde. Aquele momento existiu e teve a força de mil homens. Talvez tenha
pertencido a uma outra consciência, separada dos pensamentos e das emoções.
(…)
(…) Tanto passou e é como se nada se tivesse passado, uma
manobra corrupta do sentimento sobre o tempo e a recordação. Fica ali a
observá-la ao longe, deixando-a chorar as dores, depois vê-a abandonar a igreja
quando a cerimónia acaba sem se deixar ver e sente uma profunda admiração por
ela, que não cede á tentação de perturbar a filha num dia como este. Maria da
Glória é digna e ele ama-a. Ela sai da igreja e ele pensa em segui-la para lhe
dizer exatamente o que sente. Ela é digna e ele ama-a, ela é digna e ele ama-a,
ela é digna e ele ama-a. Não consegue. Não faria sentido. Tenta acalmar-se e
leva a mão ao peito. Sente-se dormente e pensa que é excesso de emoção.
(…) irá depois jurar a pés juntos que ele estava a sorrir,
profundamente feliz."
Patrícia Müller "Uma Senhora Nunca"
Patrícia Müller "Uma Senhora Nunca"
Este título cativou-me irremediavelmente por ser uma
expressão também usada na minha infância. Uma senhora nunca chinela; uma
senhora nunca se senta de perna aberta; uma senhora nunca responde a
provocações na mesma moeda; uma senhora nunca tem a casa suja; nunca sai à rua
descuidada, nunca diz palavrões...
A escrita é maravilhosa e bem portuguesa. O encadeamento das
histórias é propositadamente baralhado, obrigando o leitor a estar atento e
surpreendendo-o a cada capítulo com o pedaço da história a desenrolar.
A vida trivial de três gerações: os amores de verdade e os “de
senhora”, as traições, as rotinas, a riqueza e a pobreza. Tudo descrito em
movimento apressado, que se coaduna com o ritmo da própria vida.
Intimista, realista, especial.
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