sexta-feira, 1 de abril de 2016

Mil e um noites




Um final de noite em vésperas de verão. 
Estava escuro e 
quente ali.
As cores da televisão refletidas na pele nua e no branco das roupas que vestiam.
Espalhou-se no espaço que existe entre os dois aquele sentimento de falta de preenchimento. 
Aquele que nos faz abrir uma cerveja, fumar um cigarro, comer um chocolate ou batatas fritas.
Ela mexe a perna brilhante e bronzeada para afastar uma mosca e repara, embora disfarce, que o olhar dele se desviou da televisão para seguir o movimento da sua perna.
E logo de seguida ele mexe as pernas, cento e oitenta graus graus para mais perto.
Ela sorriu interiormente pela atenção que ele lhe prestou, lisonjeada por ainda o conseguir atrair para si, embora se mantenha exteriormente serena e aparentemente distraída.
- Vou comer. Queres alguma coisa?- deixa cair ele, parado em frente à televisão.
Ela  acena um não e nem sequer levanta o olhar para se encontrar com o dele. Sabe que assim que o fizer estará perdida. Ele estará a sorrir, maroto e ela não conseguirá resistir a responder com um sorriso também.
E é aí que ele a ganha, que ela deixa de conseguir fingir, que a razão se preenche de comodidade e conforto do prazer já conhecido, já trabalhado e ajustado.

Ele baixa-se e, num gesto que pretende ser ocasional, toca-lhe na pele muito ao de leve.

-Nem uma gelatina de melancia? - sempre as mesmas notas nesta cantiga de bandido que ela ouve em modo repeat sem se fartar.
 É a vez dela jogar. Sabe que ele reconhece o arrepiar da sua pele a cada toque seu. Anos volvidos e o arrepiar dá-se igualmente ao primeiro toque e vai-se repetindo numa cadeia ascendente à qual é difícil virar as costas e resistir.
- Não, obrigada. - consegue ela dizer sem o olhar.
Ele sai da sala. A ela invade-a a outra razão. Aquela que lhe recorda a sensação de angústia, de ansiedade,  de espera.
Ele volta a entrar. Ela observa-o, antecipando cada gesto seu, cada movimento do seu corpo. O sorriso que se formará quando a consegue distinguir na penumbra,  o olhar ardente que a vai percorrer da ponta do pé até aos olhos, a forma como a camisa azul clara se vai ajustar no peito quando ele se baixar, o aroma a perfume que a rodeará ao aproximar-se,  a tensão das veias do seu braço quando pousar a mão ao lado do seu corpo para se apoiar. O reflexo da luz no masculino relógio que traz no pulso. A maciez dos seus lábios quando tocarem o seu pescoço, a firmeza dos dedos que obrigarão o seu rosto a elevar-se e a solidão que verá espelhada no brilho aos olhos dele quando finalmente não os conseguir evitar.


Assim, sem aviso prévio, nem motivo de primordial importância, vai-se perdendo parte do encanto nesta desconstrução das inconformidades deste inalcançável ser.
Em tempos este olhar indecifrável fazia-a correr em seu salvamento. Sentia-se bóia,  bote salva-vidas, cobertor e conforto do que lhe parecia o mais indefeso dos seres humanos.
Hoje sente o seu próprio ser remendado, em luta pela sobrevivência enquanto tenta esgueirar-se dos becos escuros para onde a empurra esta sedução doentia e fraca.
Desta vez gela-se o impulso de aproximar os seus lábios do calor prometido. 
Inebria-se o corpo, perdendo capacidade para continuar a provocação. 
Demora-se o tempo em câmara lenta e muda-se a prespetiva, como se outras personagens observasse em seu lugar. Segue-se um sabor amargo na boca e o desconforto característico de perda e desilusão.
Tudo o que haviam tido desmorona-se assim, num corriqueiro segundo, enquanto ela se mantém imóvel apesar da proximidade do corpo dele.
Segundo que ele nunca conhecerá, compreenderá ou dará valor, mas que a liberta dele como antes horas de um dia inteiro nunca tinham conseguido fazer.




Foto: Inspiration Grid
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