Embora esteja acordada ainda, o alarme ainda
não tocou. Podia levantar-se, mas embora esteja de olhos abertos, não sente o
cérebro a funcionar. Quase não pensa, quase não vive, quase que ainda dorme.
O contrato estava assinado.
Desde as
dezasseis horas do dia anterior que tinha dado aval para a destruição da obra
de beneficência que ditara toda a sua infância.
Na altura sentira-se tão vitoriosa. Tão dona
de si, do mundo, da vingança servida fria e descongelada, pois teve que a
envolver em gelo para a proteger do esquecimento, dos remorsos, dos
amolecimentos do coração ao longo dos anos.
Depois de terminar a assinatura, sentia-se
tão satisfeita que por momentos se esqueceu de que já não tinha ninguém a quem servir
os
efeitos da sua vingança.
Esperava, ainda assim, que o seu pai tivesse
dado pelo menos uma volta no túmulo quando ela concordou em vender o terreno da
velha e imunda Fundação para que um magnata qualquer construísse mais um centro
comercial.
Ansiava que, no próximo Domingo, no Hospital
de Saúde Mental, a mãe lhe perguntasse se tinha ido levar os bolinhos aos “seus
meninos” só para ter o deleite de lhe responder que tinha vendido tudo e que já
não sabia onde encontrá-los, vendo-a, em seguida, desfigurar-se em genuíno
terror.
Tinha-se deliciado com o ilusório e
momentâneo prazer de ter devolvido todas as lágrimas que tinha chorado.
Mas, assim que chegara à rua, inundaram-na de
novo todos os fracassos: todos os vestidos iguais ao das colegas que
permaneceram nas montras das lojas, porque se comprassem vestidos mais baratos
poderiam comprar dois e um seria para fazer feliz uma das suas “irmãs” da Fundação;
todos os fins de semana em que teve que andar pela rua com uma latinha a pedir
“uma contribuição”; todos os aniversários que teve que partilhar com “os
meninos da sua mamã”, apesar do olhar das suas amiguinhas da escola.
Enfim, ao longo do tempo, foi obrigada a
fazer felizes muitos deles. Nunca se importaram se ela era feliz.
Ter fechado a Fundação fora a sua forma de
alcançar a felicidade, que merecia pois acabara por ser apenas “uma pobrezinha”
a quem nunca ninguém tinha tido a obrigação de a fazer feliz!
Mas, agora que o contrato estava assinado,
sentia-se irremediável, profunda e igualmente infeliz.
E por isso permanecia deitada, embora
acordada.foto de Vito Paladini
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