quinta-feira, 24 de julho de 2014

Renegados #1

Deitada com a face na almofada, fixa os algarismos brilhantes do despertador.
Embora esteja acordada ainda, o alarme ainda não tocou. Podia levantar-se, mas embora esteja de olhos abertos, não sente o cérebro a funcionar. Quase não pensa, quase não vive, quase que ainda dorme.
O contrato estava assinado. 
Desde as dezasseis horas do dia anterior que tinha dado aval para a destruição da obra de beneficência que ditara toda a sua infância.
Na altura sentira-se tão vitoriosa. Tão dona de si, do mundo, da vingança servida fria e descongelada, pois teve que a envolver em gelo para a proteger do esquecimento, dos remorsos, dos amolecimentos do coração ao longo dos anos.
Depois de terminar a assinatura, sentia-se tão satisfeita que por momentos se esqueceu de que já não tinha ninguém a quem servir os 
efeitos da sua vingança.
Esperava, ainda assim, que o seu pai tivesse dado pelo menos uma volta no túmulo quando ela concordou em vender o terreno da velha e imunda Fundação para que um magnata qualquer construísse mais um centro comercial.
Ansiava que, no próximo Domingo, no Hospital de Saúde Mental, a mãe lhe perguntasse se tinha ido levar os bolinhos aos “seus meninos” só para ter o deleite de lhe responder que tinha vendido tudo e que já não sabia onde encontrá-los, vendo-a, em seguida, desfigurar-se em genuíno terror.
Tinha-se deliciado com o ilusório e momentâneo prazer de ter devolvido todas as lágrimas que tinha chorado.
Mas, assim que chegara à rua, inundaram-na de novo todos os fracassos: todos os vestidos iguais ao das colegas que permaneceram nas montras das lojas, porque se comprassem vestidos mais baratos poderiam comprar dois e um seria para fazer feliz uma das suas “irmãs” da Fundação; todos os fins de semana em que teve que andar pela rua com uma latinha a pedir “uma contribuição”; todos os aniversários que teve que partilhar com “os meninos da sua mamã”, apesar do olhar das suas amiguinhas da escola.
Enfim, ao longo do tempo, foi obrigada a fazer felizes muitos deles. Nunca se importaram se ela era feliz.
Ter fechado a Fundação fora a sua forma de alcançar a felicidade, que merecia pois acabara por ser apenas “uma pobrezinha” a quem nunca ninguém tinha tido a obrigação de a fazer feliz!
Mas, agora que o contrato estava assinado, sentia-se irremediável, profunda e igualmente infeliz.
E por isso permanecia deitada, embora acordada.

foto de Vito Paladini
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