Um homem chega a casa e nunca fica verdadeiramente sozinho.
Pelo menos para Miguel não há momentos de solidão.
Assim que ouve o estalido da fechadura da porta que o separa
do resto do mundo quase que pode ouvi-los, magicamente, respirar no seu
pescoço.
Eles nunca o largam, nunca o deixam sozinho.
Mesmo quando põe o volume no máximo, eles conseguem
fazer-se ouvir.
Quando escurece toda a casa, eles conseguem fazer-se ver.
Quando
se afoga, momentaneamente, na água quente da banheira, eles aguardam pacientemente que venha à toa.
Nunca há um momento de sossego, um momento de silêncio.
São inacreditavelmente reais.
Um deles faz-lhe lembrar a sua
mãe já morta e aquele sentimento que sempre sentiu ao seu lado de não ser suficientemente capaz, suficientemente alto, suficientemente robusto, suficientemente sociável.
Outro faz-lhe lembrar o capitão de
equipa que o massacrava nos balneários dos treinos de futebol de sábado à
tarde. Só de olhar de raspão para o emblema do equipamento que traz vestido
quase que pode sentir a dor entranhar-se-lhe na carne como quando ele lhe
esmurrava a face com o punho fechado.
Há quem diga que tudo isto tem um nome.
Miguel quer lá saber
do nome que dão a toda esta multidão que dorme consigo na mesmo cama.
Ele
ficaria feliz se lhe dissessem que tem cura.
Não, não era preciso tanto.
Ele
ficaria feliz se lhe dissessem que é normal.
Se houvesse uma hipótese de todas
as outras pessoas se verem a braços com tamanha confusão, talvez ele próprio se
sentisse mais capaz de lidar com isso.
Assim, sentia-se enlouquecer.
Para ele eram como demónios, fantasmas aterradores.
Não,
também não. Pelo menos nem todos.
Não aquele que o fazia lembrar a si próprio com um casaco de xadrez gasto e com um par de óculos grossos que mal conseguia segurar no pequeno nariz e não a encantadora Amélia. Não que ele soubesse o nome de algum deles ou
sequer tivesse tido coragem de tentar qualquer espécie de conversação com qualquer
um.
Chamava-a Amélia porque se tinha apaixonado irremediavelmente
por ela assim que os seus olhares se encontraram. Talvez por ser a mais
silenciosa dos seus perseguidores, talvez pela forma como o cabelo castanho lhe
tocava na face quando ela caminhava ou simplesmente pelo maravilhoso rosado dos
seus lábios perfeitos.
Às vezes, em vez de a deixar ficar ajoelhada, alinhada no fundo da
cama,junto com todos os outros, Miguel estendia-lhe a mão para que se deitasse a seu lado, a
sorrir, com o rosto serenamente pousado sobre a almofada.
Nessas noites em que quase podia
senti-la ali a seu lado, não haveria gritaria, impressão ou gestos dos que permaneciam alinhados, capaz de o perturbar ou de o distrair do direito
que sentia de a olhar.foto de José Luís Martínez Clares
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