sábado, 30 de março de 2013

O levantar-se já vem incluído...

" Estou contente pela enorme pilha de louça por lavar que me espera amanhã de manhã (...) uma espécie de penitência.(...) Afinal, sempre estou um bocadinho triste esta noite. Mas fui eu a querer essas carícias. O querido, e ele que tinha a intenção de levar uma vida casta durante muitas semanas. (...) E foi então que apareceu uma bravia "rapariga (...). Mas essa aproximação física repentina parte de mim através de uma "proximidade espiritual" e por isso mesmo sempre é correcta. E o que retiro disto? Mais uma vez, tristeza. E um entendimento de que não consigo expressar em abraços o que sinto por alguém. (...) Creio que prefiro ver a boca dele ao longe e desejá-la do que possui-la sobre a minha. Em momentos muito raros isso traz-me uma espécie de felicidade (...). E agora durmo ao lado do Han, por pura tristeza. Tudo isto é muito caótico.
(...)
Aparentemente encontro-me num período de florescimento (...). Há um ano atrás estava mesmo moribunda, (...) era mesmo de meter medo, quando penso nisso. Esta noite folheámos algumas páginas destes cadernos. Para mim tornou-se verdadeiramente "literatura clássica", parecem-me tão distantes todos os problemas que eu tinha nesse tempo. Foi uma caminhada difícil (...) No meu reino interior reinam a paz e o sossego. Foi na verdade um caminho difícil. Agora tudo parece simples e óbvio. (...) Neste momento presente, algo enfraquecida, cansada, triste e não completamente satisfeita comigo própria, (...). Todavia o meu temperamento ainda faz demasiadas vezes o que quer, ainda não está em harmonia com o meu espírito. Porventura creio que existe em mim a necessidade de harmonia, igualmente aqui. E contudo acredito cada vez menos num só homem para o meu corpo e para a minha alma.
Mas a minha tristeza não é como a de antigamente. Não me vou abaixo tão profundamente. Na tristeza, o levantar-se já vem incluído."

Hetty Hillesum
7 de janeiro de 1942, quarta-feira, às 8 horas da noite

É o único livro que depois de lido e relido, continuo a abrir para ler. Em cada folha marcada renovo o meu espanto pela simplicidade e intemporalidade das palavras, dos temas, do sentir.
Não escolho o que escrevo. É o que calha naquele dia, mas não me parece despropositado.
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