Agora, depois de anos de uma convivência platónica em comum.
Quando nos conhecemos tinha havido química, mas embora ela se tivesse mostrado disponível, eu tinha recusado.
Não era o que procurava.
Se calhar esperava que desaparecesse, que mudasse o comportamento alegre e cativante, que concentrasse a sua atenção em procurar o homem certo.
Mas não.
Manteve-se igual.
Não.
Tornou-se ainda mais solta e por isso mais sedutora, se possível. Pareceu esquecer que alguma vez tinha ponderado a hipótese de partilhar algo mais comigo.
Passou a abraçar-me sem demora, a afagar o meu cabelo, a gargalhar quando faço algo que acha ridículo, a desvalorizar os meus avanços.
Já quase não marcamos encontros. Eu estou sempre demasiado cansado e agitado para me lembrar de a convidar e ela tem sempre tantos sítios para onde ir, tantas pessoas para ver.
Aparece, às vezes, por aqui ao fim de dia. A secretária já nem liga a avisar. Se eu estiver livre deixa-a passar livremente e o meu coração acelera de cada vez que vejo o seu vulto passar pela parede de vidro que me separa do corredor.
Ignoro o melhor que posso o fascínio que ela provoca em mim quando a olho e percebo que amante deliciosamente apetecível deve ser. Admiro a postura sincera, interessante e profunda com que preenche as conversas que continuam a surgir espontaneamente durante horas.
Ela tem a capacidade de iluminar o mundo pela forma simples como gere a sua vida sem se tornar banal ou comum.
Hoje sou eu que a espero. Já não a vejo há tanto tempo. Tenho saudades dela.
Finalmente vejo-a passar. Finjo-me ocupado, protegido atrás da secretária do computador, a olhar o ecrã. Não me levanto para a cumprimentar. Não consigo.
Chove lá fora, depreendo pelo cabelo molhado dela. O aroma que se solta dele chega até mim.
Olho-a e sorrio-lhe enquanto aprecio o movimento da respiração ofegante que ela tem devido à corrida até aqui.
Quando se aproxima de mim para me beijar levemente na face, uma gota de chuva desprende-se da parte de trás da orelha e desliza pela pele do pescoço, que eu sei bem ser macia e quente.
É habitual, apresentar-se assim, de pescoço a descoberto, doirado pelo sol de verão que ainda agora terminou, sempre de pele exposta, como que a aguardar uma carícia.
Ela afasta-se rapidamente, enquanto fala fluentemente sobre algo que eu simplesmente não estou a ouvir. Ela perturba-me. Volto a olhar para o ecrã e a movimentar os dedos pelo teclado para me tentar controlar.
Sabia que para além daquela energia apaixonada com que falava também se sentia só. Quando as conversas se estendiam até de madrugada às vezes com algum álcool à mistura, ela confessava que se sentia riste e desiludida com o que ia encontrando pelo mundo.
Devo ter-lhe respondido com monossílabos pouco assertivos ou incoerentes porque se calou, sentou-se no sofá e agarrou uma revista para a qual não olhou. Olhava a janela, distante nos seus pensamentos, enquanto esperava que acabasse o que quer que fosse tão importante que eu estava a fazer. Era quando achava que não a olhava que a podia ver melhor. A névoa do seu olhar, as marcas das lágrimas, a tensão no face. Gostava de poder explicar-lhe que não lhe respondia nem a olhava porque não sabia como reagir à vontade que sentia de a fazer feliz.
Tinha tanta vontade de conseguir fazê-lo por mais de que uns fugazes momentos, mas sabia que não conseguiria. Não era disponível, não sabia lidar com o que sentia, não gostava de me envolver, tinha outras prioridades. Ela precisava de alguém que fizesse dela o centro do universo, que a ajudasse a suportar os seus pequenos fardos e não a desiludisse. Que recuperasse, dia após dia, aquele brilho cativante de menina que tinha.
Parecia triste e cansada, embora a sua voz estivesse alegre e desprendida. Contra que demónios lutava? Quem a tinha desiludido desta vez? Era possível afagar-lhe o coração, acariciar-lhe o corpo e dizer-lhe com o olhar que era especial? Era possível, não era? Era possível, mesmo por um curto espaço de tempo fazê-la mais feliz, não era?
Levantei-me e ela, mesmo sem olhar para mim, levantou-se também por pensar que íamos sair. Dobrou o tronco para pousar a revista na mesinha e só depois de apercebeu que eu estava tão perto que o meu rosto quase que roçava no dela.
Não compreendeu, mas percebi que continuava a sentir a tentação tal como eu.
Para ela tínhamos passado essa etapa. Éramos amigos, tentou afastar-se.
Foi só quando lhe toquei no braço para a deter que me olhou, confusa.
Lentamente, aproximei os meus lábios dos dela e beijei-a suavemente.
Entre a surpresa dela e a suavidade dos seus lábios, não sei o que me impressionou mais.
Afastei-me um pouco. Obriguei-me a respirar. Não me olhou, mas também não se afastou.
Abracei-a contra mim e beijei-a, agora mais confiante de que ela não ia reagir mal.
Aproveitei mais os seus lábios e a promessa de entrega contida no seu silêncio.
Ela forçou-me a parar. Soltou-se do meu abraço. Afastou o corpo do meu.
Olhou-me sempre direta e misteriosamente.
Agarrou com as mãos a base do meu rosto, puxou-o mais para perto do seu e de uma forma incrivelmente apaixonada e previsivelmente sedutora, beijou-me como sempre me beijou a partir dali.
Um beijo meigo, perigosamente sedutor e deliciosamente profundo.
T. (10/2004)
imagem em sapo.pt
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