quinta-feira, 25 de abril de 2019

"... sem sequer pararem para pensar que elas, afinal de contas, também são pessoas." Harper Lee (1960)


"- O que... ah, sim, porque é que eu finjo? Bem é muito simples - disse ele. - Há pessoas que... pronto, que não gostam da maneira como eu vivo. Eu podia mandá-las para o diabo que as carregue, porque não me importava mesmo nada que gostem ou não. Reparem, eu digo que não me importo mesmo nada que gostem ou não, certo... mas não digo "vão prò diabo que vos carregue", estão a ver?
- Não senhor. - respondemos juntos.
- Eu tento dar-lhes um motivo, percebem? As pessoas percebem melhor as coisas se tiverem um motivo, certo? Quando venho à cidade, o que é raro, se cambalear um bocado e beber deste saco, as pessoas podem dizer que o Dolphus Raymond já está metido nos copos... e é por isso que ele não muda. O pobre coitado nada pode fazer e é por isso que vive como vive.
- Mais isso não é honesto, Mr. Raymond. Fazer-se passar por uma pessoa pior do que na realidade é...
- Não é nada honesto, eu sei, mas dá uma grande ajuda às pessoas, Miss Finch, na realidade, eu nem bebo muito, mas percebe que elas nunca, mas mesmo nunca, iriam compreender que eu vivo assim porque quero.
Tinha um pressentimento de que não devia estar ali a ouvir aquele pecador, que tinha imensos filhos mestiços e que não queria saber dos outros, mas a verdade é que ele era fascinante. Nunca tinha conhecido um indivíduo que se defraudava deliberadamente a si próprio. Mas porque é que ele nos tinha contado aquele segredo tão importante? Perguntei-lhe porquê.
- Porque vocês são crianças e podem perceber isso - respondera - e porque estava a ouvir este...
Voltou a cabeça para o Dill - A vida ainda não lhe refreou os instintos. Deixem-no crescer mais um bocadinho e vão ver que ele já não se sente mal, nem vai chorar mais. Talvez sinta que as coisas são... que as coisas não estão lá muito certas, mas nunca irá chorar quando tiver mais uns anos em cima.
- Chorar porquê, Mr. Raymond? - a masculinidade do Dill começava agora a revelar-se.
- Chorar pelo inferno absoluto por que umas pessoas fazem passar as outras... sem dó nem piedade. Chorar pelo inferno por que os brancos fazem passar as pessoas de cor, sem sequer pararem para pensar que elas, afinal de contas, também são pessoas." Harper Lee - Mataram a Cotovia (1960)

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