quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

COMBOIO NOTURNO PARA LISBOA - DA DEMASIA



"Ele pediu-me para estacionar o carro e fizemos amor. Depois disso pediu-me novamente para parar, e cada vez com mais frequência. A avalancha soltou-se- Ele procurava-me. Mas foi precisamente isso: ele procurava-me a mim, eu procurava a vida. Ele queria cada vez mais, queria-o cada vez mais rápida e avidamente. Não que alguma vez tivesse sido rude, ou até violento. Pelo contrário, antes dele eu não soubera que tal ternura era possível. Mas devorou-me com a sua ternura, aspirou-me para dentro de si,tinha uma sofreguidão tão desvairada da vida, do seu ardor, dos seus desejos... E a sua fome tinha tanto a ver com o meu espírito como com o meu corpo. Naquelas poucas horas quis conhecer toda a minha vida, todas as minhas recordações, pensamentos, fantasias, sonhos. Tudo. E compreendia com uma tal rapidez e precisão que, depois do primeiro espanto lisonjeiro, começou a meter-me medo, pois a sua compreensão desenfreada rebentava com todas as barreiras de protecção.
Nos anos que se seguiram eu punha-me sempre em fuga, assim que alguém começava a perceber-me. Também isso acabou por passar. Mas algo ficou: não quero que alguém me compreenda inteiramente. Quero percorrer o meu caminho pela vida no anonimato. A cegueira dos outros é a minha segurança e a minha liberdade.
Se bem que possa parecer que ... se interessou verdadeiramente por mim, com toda a sua paixão, não foi isso que aconteceu de facto. Não se pode dizer que tenha havido um encontro. Ele como que sugava tudo o que experimentava, sobretudo a própria substância da vida, que nunca o saciava. Para me exprimir de outra maneira, eu nunca fui verdadeiramente alguém para ele, mas apenas um palco de vida, um palco de que ele se apossou, como se até aí lho tivessem interdito.
(...)
Era algo de genuíno, de real. E no entanto não tinha nada a ver comigo. Queria levar-me para uma viagem que acabaria por ser, exclusivamente, a sua viagem, a sua viagem interior para as regiões desdenhadas da sua alma.
És demasiado esfomeado para mim, lembro-me de lhe ter dito. Não posso, é de mais; simplesmente não posso!
Naquele momento, naquela noite em que ele me puxou para dentro da entrada de um prédio, eu estava disposta a segui-lo até ao fim do mundo. Só que na altura não conhecia aquela sua fome terrível. Pois, porque, de certa maneira, havia algo de terrível naquela sua avidez de vida. Um poder devorador, destruidor. Assustador. Tremendo.
(...)
Só então compreendi: as minhas palavras tinham-no deixado com a sensação de ter perdido a dignidade, e todo aquele formalismo, toda aquela correcção, não significavam mais do que uma tentativa inábil de me demonstrar que a tinha reconquistado, essa dignidade." "in COMBOIO NOTURNO PARA LISBOA - Pascal Mercier


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