terça-feira, 23 de outubro de 2018

Um tostão



-Em que estás a pensar? - ouviu-o perguntar e voltou a centrar o pensamento na mesma dimensão onde ele se encontrava.
Distraída pelo calor do raio solar que passava pela vidro sujo de marcas da chuva e da maresia trazida pelo vento,  sonhava ou sentia apenas algo que não conseguiria traduzir em palavras.
Uma sensação de aconchego e carinho que a envolvia , a partir do interior do seu ser.
Pura felicidade, ilusão, paz? Não sabia como descrever.
Mesmo quando, tal como agora, se esforçava por encontrar as palavras certas (ou mesmo só as mais certas) não lhe surgia nenhuma que expressasse o que sentia.
Decidiu eufemizar.
-E tu? Tens como pagar?
Surpreendido, esboçou um sorriso, aproximou-se mais e repetiu:
-Estavas tão calada e distraída a olhar o mar. Está tudo bem?
-Sim.  - desviou o olhar para o copo e procurou resistir ao prazer da evasão.
-Não tens como me pagar então!
-Ah não?! Nem que te pague a água? Podes pedir outra coisa se quiseres. - brincou ele.
-Tens algum tostão?
-Tenho.
-Tens? - deu uma gargalhada, fingiu-se surpreendida e desconfiada.
Eufemiza, facilita, brinca, aproxima-te, deixa-o entrar.
-Não estou a perceber. - disse ele, sério e impaciente.
-"Um tostão pelos teus pensamentos". Adoro esta expressão. - explicou ela, tentando suavizar o momento com um sorriso e um piscar de olho.
-Ah! Mas não vou pagar pelos teus pensamentos. Só me contas se quiseres. - respondeu ele, irritado e orgulhoso.
-Eu sei.- murmurou, voltando-se de novo para o mar. Sentia-se desapegada, incompreendida, desacompanhada, triste.
Ele pegou no telemóvel:
-Olha,  o restaurante de que te falei. Vê o que achas.
E ela aproximou-se do telemóvel,olhou o ecrã, fez deslizar as imagens.
Naquela dimensão mostrou-se interessada no programa,  na companhia, na prolongamento da ilusão.
Nas outras mil dimensões da sua alma ficou a desilusão que as pessoas lhe provocavam de tempos a tempos, a solidão das mentes inquietas, a escassez das conversas ricas
Impondo a si mesma a paciência para se deixar gostar pelos outros, para se deixar acompanhar, entreter.


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