domingo, 5 de agosto de 2018

ESPAÇOS EM BRANCO (3)




Estava atrasado.
Como sempre. 
Desta vez não tão involuntariamente como das outras. 
Na verdade, se pudesse, teria adiado para sempre esta conversa. Nunca fora de fugir das situações, mas havia algo que lhe dizia que vinha apenas confrontar-se com o que não soubera agarrar e sentia--se pouco preparado para tal constatação.
Conhecia-a há anos, mas muito pouco. Tinham um acumulado de horas de conversa sobre todos os assuntos, mas sentia que mal a conhecia, que nunca a compreendia verdadeiramente e que jamais conseguia antecipar o que ia fazer a seguir.
Às vezes, parecia-lhe nada mais que uma rapariga mimada, que usava do seu poder de sedução para o prender, para o ludibriar sem nunca lhe ter dado realmente nada em troca. Nessas alturas, achava que ela o enganava, que não lhe dizia toda a verdade. Que jogava com ele um qualquer jogo sórdido em que o empurrava para longe quando ele chegava um bocadinho mais perto e o puxava de novo para si quando percebia que ele começava a manifestar interesse em outras pessoas. Parecia fazê-lo andar nesta indecisão só pelo prazer de confirmar que ele continuaria a fazer tudo e qualquer coisa por ela.
Desde que a conhecera só perdera: a calma, a confiança, a vontade própria. Sofria de cada vez que confirmava esta teoria de que a sua doçura era ensaiada e que a amizade que fingia oferecer-lhe era nada mais que um capricho ao qual não tencionava, de modo algum, corresponder.
Desgastava-se ao tentar contrariar quando, distraída, a mente lhe fugia para  sua voz, para a sua sensualidade, para a sua aparente integridade e generosidade. Prometia a si mesmo manter-se no seu lugar, não lhe dar mais do que ela merecia, mas honestamente nunca conseguia resistir quando a sentia mais próxima.
Nunca antes, pelo menos. Há uns meses que tinha decidido acabar de vez com a palhaçada e se tinha afastado dela. Não que ela não continuasse a perturbar-lhe o sono ou o espírito, mas pelo menos não a via frequentemente e ela não tinha hipótese de tecer a habitual teia à sua volta, com aqueles modos ambíguos de se mostrar inacessível e ao mesmo tempo concedendo-lhe toda a sua atenção e cuidado.

Toda a gente sabe que os homens e as mulheres não são simplesmente amigos. Pelo menos não aqueles que não têm entre si algo que os una - como um irmão, um marido, um local de trabalho, um gosto por algo particular. Os homens e as mulheres desenvolvem uma amizade quando, um deles, recebe ou procura receber dela algo mais. E por isso se mantém os encontros. Até que se verifique, do lado que espera mais, que a relação não vai avançar. Aí, os supostos amigos afastam-se e procuram novas amizades mais compensadoras.
Era isso que ia acontecer com esta amizade.
Não podia mais compactuar com esta utilização mal disfarçada do seu amor. Precisava de procurar relações mais compensadoras. Precisava voltar a estar livre para procurar uma mulher com quem partilhar a vida.

Não tinha sido assim tão difícil manter-se longe até ver a calçada do jardim por baixo dos pés. Da entrada do jardim, conseguiu ver-lhe o cabelo que o vento despenteava e reduziu ainda mais o ritmo. Ainda que muito atrasado, não sabia como abordá-la. Não sabia bem o que lhe dizer ou sequer se queria ouvir o que ela pensava sobre o que acontecera. Por uma ou duas vezes ela tinha sido explícita no seu desagrado e desapontamento. Sabia, com toda a certeza, que seria a última vez que estaria com ela. Sabia que, quando fizesse o caminho de regresso, lhe teria dito, explícita ou implicitamente adeus e que tudo terminaria assim.

Para ganhar coragem, sentou-se num banco de jardim onde ela não o conseguiria ver.
Talvez pudesse poupar-se a este último encontro.
Talvez pudesse, por uma vez, resistir ao seu chamamento e ao seu poder de atração.
Talvez devesse evitar perder o discernimento como acontecia sempre que o perfume dela dividia o espaço entre os dois.
Talvez pudesse, inexplicavelmente, não aparecer.


T. (2004)
(participação no projeto as-sukar no tema Azulejos)

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