quinta-feira, 14 de setembro de 2017

a vida não é aqui

No estilo muito próprio do autor, desenrola-se sob os nossos olhos a vida de um poeta recheada de trivialidades, acasos e coincidências.
Aqui e ali, surpreende-nos com verdades que nos arrepiam deixadas assim, como ao acaso, entre uma linha e outra.



"...proferira esta frase num impulso de cólera, e bem vistas as coisas, sem refletir, apesar disso, a frase merece que nela nos detenhamos por um momento: acabava de utilizar palavras que se podiam ler com frequência na imprensa comunista, mas que até lhe causavam certa repulsa, como lhe repugnavam todas as frases estereotipadas. Sempre considerara que era, antes de mais, um poeta, e, por conseguinte, embora fizesse discursos revolucionários, não queria renunciar à sua própria linguagem. E ei-lo que dizia agora: a classe operária há-de torcer-te o pescoço.
Sim, é uma coisa estranha: um momento de exaltação (portanto, um momento em que o indivíduo age espontaneamente e em que se revela tal como é), Jaromil renunciava à sua linguagem e preferia escolher a possibilidade de ser médium de outrem. E não só agia assim como agia assim com um sentimento de intensa satisfação; tinha a impressão de fazer parte de uma multidão de mil cabeças, de ser uma das cabeças do dragão de mil cabeças de um povo em marcha e achava tudo isso grandioso. Tinha de súbito a sensação de ser forte e de poder rir-se abertamente de um homem diante do qual, ainda ontem, corava timidamente.
E se a rude simplicidade da frase proferida (...) era para ele uma fonte de gozo, era justamente porque o punha do lado daqueles homens maravilhosamente simples que se riem das subtilezas e cuja sabedoria consistia em interessarem-se apenas pelo essencial, que é sempre insolentemente simples."
Milan Kundera - A Vida Não é Aqui
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