terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Os transparentes


Com já várias vezes referi, a escolha dos livros que leio é mais feita pelo acaso do que por qualquer outro motivo. Leio os livros que me chegam às mãos, que encontro nas estantes das outras pessoas, nas caixas arrumadas na garagem ou no sótão de alguém. Quando compro livros, adoro títulos, que na maioria das vezes descarto quando leio o resumo. Ou então abro os livros numa página qualquer e, se gostar do estilo de escrita, se me parecer fácil e de ritmo rápido compro.

Este livro foi mesmo um feliz acaso. Um fim de semana destes fui jantar, também por um acaso, a casa de uma tia e, enquanto fazia "sala" antes do jantar este livro, desta cor vermelho sangue chamou-me a atenção. O título chamou-me a atenção, embora só muito mais tarde viesse a perceber-lhe o significado. A capa adorei, embora também só depois de ler o livro lhe tenha percebido a lógica.

Logo após a primeira leitura (para aí umas trinta páginas) estava encantada pela frescura da escrita, pela crítica divertida, pelo trabalho de autor que se percebia nos pormenores e pela diferença no tema (não tenho por hábito ler livros sobre Luanda, como devem imaginar). Foi nesse momento que fui ler a biografia do autor e fiquei surpreendida por ainda não ter ouvido falar dele, pois parece muito talentoso, prolífero e valorizado.

O livro continuei a lê-lo com imenso prazer. A diversão e a crítica social embrulham-se inesperadamente em histórias do dia a dia e nas variáveis das relações familiares e de vizinhança. Tudo no que são, para mim, personagens singulares e incrivelmente desenhadas de modo a dar-nos a sensação de estar a passar pela rua e a ver este prédio e a ouvir estes murmúrios.
Enfim só lendo!


Deixo uma das passagens que mais me fez lembrar Portugal:
"... 
o que nalguns países é um lar, composto por uma determinada combinação de objetos e possibilidades, em outro pode não ser bem assim, uma vez que, humanamente, nos mais variados continentes, é a força do hábito que dita as circunstâncias que cada cidadão acata como aceitáveis, coletivamente insuportáveis ou democraticamente justas
(...)
-é preciso ter algum cuidado com aquilo que se designa por progresso-dizia o Esquerdista (...)
(...)
- há que ler nas entrelinhas, meus amigos... tá todo o mundo distraído e convencido de que vai encontrar petróleo no seu próprio quintal... mas eu não ando a dormir, ando a beber, mas não ando a dormir...
(...)
- Há controvérsia, meus amigos... nas primeiras entrevistas ele falou dos cuidados, dos riscos, das potenciais consequências, agora já ninguém o ouve... o sistema já deve ter dado um jeito, agora é só falar nas vantagens, já inauguraram a nova empresa de distribuição das águas... onde é que já se viu!... águas privatizadas...
- mas não é só a distribuição, para controlar melhor os canos e tal?
- acordem, homens... qual distribuição?! então e o estado agora precisa que alguém do setor privado distribua a água? e nós ficamos calados, não é assim? o estado admite " eu não posso distribuir a água com qualidade, mas este senhor, que até já tem o nome tão Cristalino, ele sim, pode! a partir de agora a água será bem distribuída, bem purificada! viva a privatização da água!" mas onde é que já se viu?
- também não é preciso ficar assim, homem...
- durmam... - dizia o Esquerdista com ar irónico e triste e, desapontado, e sério - durmam enquanto vos enfiam o dedo no cu sem aparar as unhas... durmam enquanto vos anestesiam com doses de suposta modernidade!, é carros lindos, é internetes que nem funcionam, é marginal nova com prédios construídos em areias dragadas sem pedir licença à Kianda, é furar o corpo da cidade sem querer ouvir os outros que já furaram o corpo da cidade deles, onde não deu certo... ouçam bem, dorminhocos, lá não deu certo, e aqui, porque somos estúpidos, cegos e coniventes, isto é, porque somos globalmente corruptos, aqui a cidade vai ser furada, a água vai ser privatizada, o petróleo vai ser sugado sob as nossas casas, os nossos narizes, e as nossas dignidades... enquanto os políticos fingem que são políticos... enquanto o povo dorme...
um silêncio bruto (...) foi apenas quebrado pelo som de quatro ou cinco homens a fazerem aquilo que lhes pareceu que era o que restava a ser feito, sorver ruidosamente as suas cervejas, olhar para longe sem olhar para os olhos dos outros, coçar a cabeça e o peito (...)
(...)"
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