quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Comboio Noturno para Lisboa - do destino



"Ninguém está destinado a uma outra pessoa. Não só porque não existe um destino, nem ninguém capaz de manipular as vidas a esse nível. Não:acima de tudo porque entre as pessoas não existe nenhuma obrigatoriedade que possa transcender as necessidades casuais e o poder dominador do hábito. (...) Estava aqui por um mero acaso, tu passaste por ali, por acaso, entre nós os copos de champanhe. Foi assim que as coisas aconteceram. Simplesmente assim, e de nenhuma outra maneira.

 (...)
Vinhas a descer as escadas. como já milhares de vezes anteriormente, fiquei a ver como cada vez mais de ti se foi tornando visível, enquanto a cabeça se manteve ocultada, até ao fim, pela escada do lado contrário. Sempre me habituara a completar em pensamento a parte ainda escondida. E sempre da mesma maneira, pelo que já sabia quem ali vinha.
Mas subitamente, nessa manhã, aconteceu algo diferente. Uns miúdos que tinham estado a jogar à bola no dia anterior tinham quebrado a vidraça colorida da janela. A luz nas escadas era agora diferente - em vez daquele tom dourado, velado, que me fazia lembrar a iluminação de uma igreja, os raios de sol iluminavam diretamente o espaço. Foi como se essa nova luz tivesse aberto uma brecha nas minhas habituais expectativas, como se algo se rasgasse, o que exigiu de mim novos pensamentos. De repente, fiquei curioso em ver o aspeto do teu rosto. Esse súbito interesse deixou-me feliz e, simultaneamente, sobressaltado. A fase do sobressalto e do espanto já havia terminado há anos, e a porta por trás da nossa vida em comum há muito que se fechara. (...) porque é que tinha sido necessário que um vidro se quebrasse para que eu olhasse novamente para ti com um olhar aberto?"in COMBOIO NOTURNO PARA LISBOA - Pascal Mercier




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