quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A Maria, o Manel e o Michael

marta filipa costa
Fotografia de Marta Filipa Costa



Ontem, à hora de jantar

Miquito riu-se e anunciou pomposamente aos pais que, no dia seguinte, iam dar um passeio pela cidade.

- Não sejas tolo, filho. Agora nós irmos à cidade... Que ideia!

- Vamos à feira, mãe. À Feira de São Mateus. - encorajou Michael, embora a mãe não precisasse verdadeiramente de ser convencida.

Manuel não dizia nada. O prato de sopa vazio à sua frente dava-lhe um pretexto para ouvir toda a conversa, fingindo-se atento às notícias.

- Ainda ontem estive toda a tarde a ver a feira na televisão. Quando éramos mais novos ainda lá fomos, lembras-te, Manel? Andámos na montanha russa. Eu sempre gostei muito de andar de montanha russa. Até compramos uns chinelos. Ainda andavam por aí.

Como Manel não respondesse, o entusiasmo de Maria desapareceu por completo. Emudecida a conversa, começou a tirar a loiça da mesa.

- Amanhã vais andar de montanha russa comigo.-disse Michael, abraçando a mãe e dando-lhe um beijo.

A mãe riu-se interiormente e enquanto o afastava dizia:

- Oh,deixa-te disso. Estás maluco? Já não tenho idade para essas coisas.

O pai nada dizia, mas já fazia contas às horas que tinha que se levantar mais cedo para dar comida e tratar dos animais antes de tomar banho e sair para passear. Agora parecia ser moda ir à cidade durante a semana. Ainda na semana passada o Quim, saíra com a mulher e com as filhas todo o dia para a cidade. À tardinha, quando voltava das terras, tinha visto ainda a casa toda fechada e na entrada ainda não estava nenhum carro. Apostara uma camisa em como à hora de jantar ainda não estariam por casa. Confirmou as suas suspeitas quando, na manhã seguinte, o Quim só apareceu para tratar dos seus animais quando Manel já estava de regresso para a bucha da manhã. Só modernices... isso de ir à cidade e a de comer a meio da manhã. Mas a doutora disse ser indispensável e a Maria desde então deixava sempre preparada a refeição. Por isso comia e não pensava mais no assunto.

- Vou à associação. - anuncia Michael redondamente, uma vez o forte cheiro a perfume que antecedeu a sua entrada na cozinha caracterizavam estas suas saídas depois da hora de jantar.

- Levas a chave? Não quero ir deitar-me com a porta aberta. Pode haver perigo por já ser tão escuro.

- Não te preocupes, Maria, que à hora que ele volta já está a porta aberta outra vez. - comentou Manel.

Maria não disse mais nada porque queria evitar mais uma vez a conversa por causa das horas de chegada a casa do.filho. Coitado. Trabalhava tanto todo o ano. Lá longe. Sabe Deus passando necessidades. Frio e fome. Magrinho como andava não devia comer nada de jeito. Era justo que se divertiste no verão com as miúdas da aldeia. Podia ser que alguma lhe agradasse e que ele voltasse para a terra onde podia voltar a tomar conta dele.

- Vou pôr a jeito a camisa a azul e as calças de fato para amanhã. Não vais engraxar os sapatos?

- Olha agora! Era o que faltava: engraxar os sapatos para ir à cidade! Engraxei-os no domingo para ir à missa e é assim que mesmo vão. E eu vou levar a camisa vermelha. Estamos no verão e não vou usar uma camisa de manga comprida.

Maria nada disse. Aproximou-se da tábua de passar com a camisa vermelha e as calças. Ela própria vestiria o vestido de verão se a Manuela da retrosaria não lhe tivesse dito na semana passada que agora as senhoras da cidade só usam calças de ganga e blusas. Tinham comprado uns calções de ganga que quase lhe chegavam aos tornozelo. Não aguentava as calças compridas e apertadas e o seu Manel não a deixava usar nada que não ficasse quatro dedos abaixo do joelho. Levaria na mesma a blusa de domingo e o casaquito de malha, não fosse esfriar. Talvez devesse dar um jeito nas sandálias pretas que estavam cheia de pó porque da última vez que fora a mercearia estavam a fazer uns ladrilhos na casa do Ramiro e ficaram uma desgraça. Passou a roupa o mais depressa que pôde, pensando que os rins já não a largavam e que as dores da velhice são para aguentar.
Quando entrou na arrecadação para ir buscar a graxa, encontrou Manel que engraxava os sapatos e que quando a viu lhe disse:

- Deixa-as aí,mulher. Já te tomo conta disso.

E assim se foram deitar. E depois da atribulada manhã para os pais lá se levantou Michael que lhes tinha prometido um dia de passeio. Queria que os pais se orgulhassem dele. Que vissem pelas suas mãos o mundo lá fora e que soubessem como era esperto e bem relacionado.
Partiu a família da porta de casa no Fiat Punto branco quitado de Micael. Como se fossem ver o presidente. Com mal disfarçada emoção, sentou-se Manel no banco da frente do passageiro a maldizer a cor laranja das jantes, mas ao mesmo tempo orgulhoso pois tinha ouvido dizer que era moda agora os carros serem todos alterados.

A Maria, no banco de trás, só lhe faltava uma nora para lhe fazer companhia e a acalmar com um sorrisinho cúmplice de quem também está ansiosa pelo passeio.

Pelo caminho Michael levou os pais a uma barragem onde costumava ir com os rapazes da aldeia. Convenceu a mãe a sair do carro e a ir ver a água. Maria sentiu-se estranha no meio daquelas pessoas em fato que banho que se estendiam pela margem verde da barragem a apanhar sol, dormir ou ler o jornal. Viu muitas crianças na água e mantas, cadeiras e geleiras encostadas nas sombras das árvores.Tinha muito calor e a roupa era tanta em comparação aos outros que ficou quase a meio do caminho.

- Devíamos ter trazido o fato de banho.- desabafou num sussurro.

- Não sabias ter preparado os sacos ontem? - respondeu Michael bruscamente. Estava desiludido por não ter conseguido tirar o pai do carro e sentia agora a mãe tão incomodada como se lhe estivesse a fazer algum mal.

Maria parou e deixou o filho avançar até à água. Precisava de pensar no que tinha feito de errado, embora o próprio filho, habituado que estava àqueles lugares também estivesse vestido dos pés à cabeça. Não pensara que passeariam ali. Podia bem ter preparado um piquenique. Até tinham comprado na semana passada presunto do melhor lá na senhora Clara. Podia, mas não sabia que era preciso. E o fato de banho não tinha. O Manel tinha os calções que usava quando tomava o banho de mangueirada depois de tratar da terra, mas ela nunca tinha tido um fato de banho e dele também não tinha sentido falta.

Pensou com saudade na sua cozinha humilde. Na novela que estaria a dar na televisão. No descanso das pernas a seguir ao almoço e quase desejou não ter saído de casa, mas depois voltou a olhar para Miquito. O tempo tinha voado e tinha saudades dele. Aproximou-se dele, que voltava da beira da água. Parecia vir mais calmo.

- Sei de um restaurante bom para irmos almoçar.

Maria sorriu-lhe e, ao voltarem para o carro, avistaram Manel que à sombra de uma árvore os observava:

- Olha que este espaço está bem bonito...




Fotografia de Marta Filipa Costa
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